Blank The Series e a Pedofilia Codificada

Aviso: Antes de qualquer consideração, é importante esclarecer que esta é uma análise do relacionamento entre duas personagens, sem qualquer implicação no relacionamento das atrizes que as interpretam.

Blank The Series é uma série GL (Girls Love/Amor Entre Meninas) tailandesa que aborda o romance entre Anueng (interpretada por Yoko Apasra), uma jovem de 20 anos que apresenta um discreto atraso em seu desenvolvimento cognitivo e comportamental, em decorrência de ter sido um bebê que esteve próximo de ser abortado, e Nueng (interpretada por Faye Peraya), uma mulher independente e artista, que se emancipou de sua família há muitos anos para viver conforme suas próprias escolhas.

A idade de Nueng foi propositadamente omitida nesta introdução por uma razão simples: ela não importa. Diferentemente do que muitas fãs acreditam ser a principal questão quando essa discussão surge – e que costumam se esforçar para contra-argumentar apresentando “exemplos piores” da indústria –, a diferença de idade entre as personagens nunca foi o problema. A idade de Anueng só se torna relevante por um motivo: ela atinge o limite mínimo da maioridade civil na Tailândia. Ou seja, tecnicamente, Anueng é maior de idade, mas será que ela pode realmente ser considerada uma mulher adulta?

No inglês, existe o termo "coded", que refere-se a uma forma de comunicação em que certas palavras, expressões ou comportamentos carregam significados implícitos ou ocultos em uma camada mais superficial de leitura. Embora semelhante ao conceito de subtexto, "coded" é usado, com frequência, como uma forma de transmissão de ideias de uma forma mais discreta, posto que seus símbolos são tomados como "inofensivos" quando analisados isoladamente, já que há intenção (por parte da autoria) de evitar controvérsias ou direcionar mensagens para transmitir ideias a um determinado público-alvo de forma indireta. O subtexto, por sua vez, oferece camadas de significado que estão atreladas ao contexto e pode ser recuperado de maneira isolada, sem o processo de "decodificação" de uma mensagem discreta.

Aqui, entra a expressão “pedo-coded”. A infantilização da mulher não é um fenômeno novo em produções asiáticas, sendo bastante comum em animes japoneses, que quase parecem adotar essa prática como um pré-requisito narrativo. No anime Os Sete Pecados Capitais, por exemplo, o personagem Ban, com milhares de anos de idade e o corpo de um homem adulto, vive um romance com Elaine, que também tem milhares de anos, mas por ser a Santa da Fonte da Juventude, possui a aparência, voz e trejeitos de… bom, de uma criança. 

Ban e Elaine de "Os Sete Pecados Capitais"

Embora tecnicamente sejam adultas, é preciso analisar como a caracterização dessas personagens afetam a percepção do público sobre seus relacionamentos. E para destrinchar melhor esse assunto, precisamos falar sobre a intenção narrativa por trás dessas escolhas.

Toda obra de ficção pretende causar sensações ou gerar reflexões em sua audiência, e para isso utiliza-se de elementos na construção dos personagens, do ambiente e do contexto narrativo em que estão inseridos. Quando se trata de mídias audiovisuais, isso pode ser desenvolvido de forma mais sutil, e aqui serão enfatizados os principais pontos onde Blank The Series desenha sua intenção:

1. Caracterização: Anueng, ainda no ensino médio na primeira parte da série devido ao seu atraso no desenvolvimento, é frequentemente retratada usando seu uniforme escolar. Contudo, o aspecto mais problemático reside em sua personalidade, que é excessivamente infantilizada, mesmo para uma adolescente: sua voz fina e forçada, a linguagem corporal e o comportamento “birrento” evocam características mais associadas a uma criança do que a uma jovem adulta.

   Comportamento infantil de Anueng

2. Contexto familiar: Anueng vive com sua avó superprotetora, que exerce um controle significativo sobre ela. A história revela que a mãe de Anueng foi amiga de Nueng na adolescência e, spoiler alert, Nueng chegou a sugerir que a mãe de Anueng interrompesse a gravidez na época (isso não foi a causa das complicações, mas é um ponto importante). Além disso, o pai de Anueng foi noivo de Nueng e ainda guarda sentimentos por ela. A relação entre Anueng e Nueng é frequentemente interpretada pelas pessoas ao redor como um vínculo inocente de cuidado, como se Nueng fosse uma espécie de “tia” para a jovem.

3. Dinâmica afetiva: E não é à toa que Anueng se refere à sua amada por “Ar-Nueng”. Na língua tailandesa, o prefixo "Ar" denota respeito e é frequentemente usado em relação a tios ou tias. A relação das duas é muito estranha e desconfortável desde o início, em que Nueng enxergava Anueng como alguém frágil que ela precisava cuidar. Com o tempo (e nem tanto tempo assim), essa relação evolui para um desejo sexual e romântico, após avanços por parte de Anueng. Entretanto, a dinâmica de “cuidar de alguém frágil” permanece, mesmo quando o relacionamento se torna mais íntimo, com exemplos como Nueng oferecendo deixar Anueng beijar seu rosto como recompensa caso ela termine seu dever de casa.

Portanto, não, vocês não enxergam Anueng como uma mulher adulta. Independente da relação e percepção que vocês tenham da atriz Yoko Apasra na vida real ou da desculpa que contam a si mesmas para se sentirem melhor no fim do dia, Blank The Series é sim uma obra pedo-coded (isso  que não estamos nem entrando no mérito da novel).

Claro que há outras nuances na história e, apesar de tudo, Nueng não é retratada como uma predadora. Em vez disso, ela é mostrada como uma mulher reclusa e sensível, com questões internas mal resolvidas, que aos poucos passa a tomar agência sobre sua própria vulnerabilidade após encontrar alguém que a faz sentir-se à vontade para isso. Uma personagem bem construída, que infelizmente acaba refém da perspectiva imposta pela obra.

É sabido que existem muitos GLs com temáticas e elementos problemáticos, especialmente os baseados em obras da escritora Chao Planoy, e é natural entre as pessoas do nicho (do qual faço parte) ignorar, relevar ou até brincar com essas situações, não só pelo valor do entretenimento, mas principalmente porque a indústria do GL tailandês vem oferecendo um catálogo cada vez mais vasto desse conteúdo tão negligenciado pela mídia ocidental. No entanto, algumas linhas não se cruzam, e quando chega a um ponto em que o próprio fandom se refere à personagem (e muitas vezes até à própria atriz) como Mucilon, talvez seja hora de reavaliarmos o tipo de mídia que estamos consumindo e o tipo de relacionamento que estamos romantizando.

Texto de Fernanda "Ferbs" Pinheiro

Revisão de Tiago Samps