A arte é um sabor essencialmente humano.

Ano passado, li esta excepcional história da dupla Ram V e Filipe Andrade: Sabores Raros. É sobre um demônio canibal que, por meio da comida, se apaixona pela humanidade. Porque cada receita, ele aprende, carrega histórias e sabores únicos — um pedaço das pessoas que as fazem, sua essência. Nesse sentido, em cada capítulo, somos apresentados a um prato relacionado a um personagem cuja história nos é contada. Vemos um imigrante que carrega a cultura do seu país natal em sua nova realidade, uma mãe doente que realiza um banquete para seus conhecidos em seus últimos dias, enfim...

O que o protagonista, Rubin Baksh, tenta ensinar ao seu parceiro, o jovem cineasta desiludido com a vida, Mohan, em meio a uma jornada culinária pela Índia, é que a comida não deve ser meramente consumida de forma trivial, mas sim aproveitada justamente por tudo aquilo que ela é capaz de carregar. 

Para mim, a história, na verdade, não é apenas sobre comida — ela é fundamentalmente sobre arte. Aquilo em que colocamos parte de nós e tornamos único, que possibilita nos conectarmos com outras pessoas e transmitirmos nossos sentimentos mesmo para quem nunca conhecemos pessoalmente, ou até para quem vive décadas ou séculos depois de nós. 

A primeira história que li de Ram V e Filipe Andrade, que hoje é minha história favorita, foi As Muitas Mortes de Laila Starr, publicada em 2021. Trata de uma deusa da morte que foi demitida porque um humano que iria inventar a vida eterna estava prestes a nascer. Sem propósito, a divindade é forçada a viver entre os humanos em um corpo mortal, e isso pressupõe entender o que é ser humano, ou seja, lidar com as emoções que carregamos. 

Na segunda edição, ela conhece o jovem Darius Shah (o garoto que inventaria a imortalidade) no funeral de Bardhan, um funcionário que trabalhava em sua casa. Bardhan era um homem forte e alto, de pele escura, gentil apesar das dificuldades da vida, que, na visão infantil de Darius, era quase como uma divindade. Darius não conseguia conceber a ideia de um ser tão excepcional ser capaz de deixar o nosso mundo — deuses não podem morrer, certo? 


Imediatamente, ao ler essa história, lembrei do meu avô: um homem forte e alto, de pele escura, gentil apesar das dificuldades da vida e que, para mim, era quase como uma divindade. Aos meus 14 anos, eu não consegui conceber a ideia de que alguém tão excepcional era capaz de deixar o nosso mundo. E embora eu achasse esse que esse sentimento era incompreensível, a arte me provou o contrário: fui compreendido por pessoas do outro lado do mundo, com quem nunca tive contato direto, mas que, em alguma medida, haviam sentido a mesma dor que eu e, naquele momento, estávamos conectados apesar de quaisquer barreiras geográficas ou cronológicas. 

Esse é o poder da arte: transcender barreiras, transmitir ideias, conectar sentimentos e desejos, sejam eles positivos ou negativos, através do tempo e do espaço.

E isso é essencialmente humano. No momento de ascensão das inteligências artificiais generativas, que emulam a arte, devemos ressaltar que uma máquina jamais será capaz de alcançar o potencial daqueles que ousam se expressar. Que nos lembremos disso e continuemos a colocar parte de nós naquilo que criamos, gerando conexões, discussões e a possibilidade de conceber sabores verdadeiros e únicos. 

“É nossa natureza sermos bestas devoradoras tão desajeitadas. Viver e trabalhar pra que possamos comer e sermos comidos. Consumir e sermos consumidos pela eternidade. E, pra esse fim, construímos ao nosso redor um maquinário de consumo. Fica fácil esquecer, então, que sabores verdadeiros sob tudo isso. Diante de tanto desespero, nossa única qualidade salvadora é a habilidade de fazer coisas. E, enquanto elas vierem da honestidade, da fascinação e do sabor verdadeiro… sempre haverá espaço para mais.”

Texto de Vandercleo Junior.

Revisado por Clara Silvestre

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