Gelphie: O Romance Não Contado das Bruxas de Oz
Wicked é um dos maiores sucessos do teatro musical e vem ganhando cada vez mais popularidade através de sua adaptação cinematográfica, protagonizada por Cynthia Erivo e Ariana Grande. A obra que deu origem a essa história, o livro de 1995 escrito por Gregory Maguire, surgiu através da ideia do autor de explorar o passado e as motivações da Bruxa Má do Oeste, Elphaba, e de Glinda, A Boa, do clássico O Mágico de Oz, de L. Frank Baum.
A peça traz uma estrutura narrativa, temáticas, acontecimentos e até um desfecho bem diferentes do livro homônimo, mas há um elemento constante que atravessa as versões: Gelphie, como é chamada a relação entre Glinda e Elphaba pelos fãs. O vínculo entre as duas personagens sempre despertou o interesse do público, das atrizes que as interpretaram no palco e no cinema, até do próprio Maguire, visto que esse conceito esteve também muito presente no livro, às vezes deixando até de ser subtexto e se tornando, de fato, texto:
“Vai ficar tudo bem”, disse ela. “Agora você já é uma viajante experiente. É só a volta de algum percurso que já conhece.” Ela aproximou seu rosto do de Glinda e a beijou. “Aguenta firme, se puder”, murmurou, e a beijou de novo. “Aguenta firme, meu amor.”
E após anos de especulação sobre onde teria sido esse beijo — no rosto, na testa, ou em outro lugar que se considerasse mais “plausível” do que um beijo na boca entre duas mulheres, a graphic novel oficial, adaptada e ilustrada por Scott Hampton, veio para sanar qualquer dúvida:
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Painel de Wicked: The Graphic Novel Part I |
Em recente declaração para a Revista them, Maguire revelou que a tensão sexual entre Elphaba e Glinda foi “intencional, e foi modesto, contido e refinado de uma forma que se podia imaginar que uma daquelas duas jovens tivesse sentido mais do que a outra e não quisesse dizer. Ou talvez, porque um romancista não pode escrever todas as cenas, talvez quando as luzes estavam apagadas e o romancista tinha saído para fumar nos fundos, as garotas tenham feito sexo na cama a caminho da Cidade das Esmeraldas. Eu queria propor essa possibilidade, mas não queria fazer uma declaração definitiva.”
Ariana Grande curtiu a publicação no Instagram.
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Declaração de Maguire, curtida por Grande. |
Glinda é uma ótima representação da mulher lésbica sob o peso da heterossexualidade compulsória. No musical, seu envolvimento com Fiyero Tigeelar não nasce de um interesse romântico genuíno, mas sim de um deslumbre pelo casamento perfeito, com o homem perfeito, que lhe garantiria o status social perfeito. E isso faz um ótimo paralelo à versão literária de Glinda, que em momento algum tem qualquer tipo de relação com Fiyero, mas acaba se casando com Sir Chuffrey, um homem rico e mais velho por quem ela nunca expressa ter sentimentos românticos, apenas uma relação respeitosa e amigável que existe somente para consolidar sua posição social. Elphaba, por sua vez, é comumente lida como bissexual, dado que sua paixão por Fiyero é honesta e inegável em ambas versões da obra, mas o papel do príncipe winkie acaba se tornando um tanto quanto obsoleto quando comparado à forte ligação entre as duas protagonistas, sendo o coração e a alma dessa história.
Para além de todas as evidências e declarações, é claro que não poderia faltar a sessão subtexto homoerótico aqui nesse texto, e para isso, nada melhor do que a tradução (e não a adaptação feita para a montagem brasileira do musical, que acaba perdendo um pouco da essência original) de um trecho de What is This Feeling, uma das principais canções do espetáculo:
O que é esse sentimento, tão repentino e novo?
Senti no momento que coloquei os olhos em você
Meu pulso está acelerando, minha cabeça está girando
Meu rosto está corando
O que é esse sentimento?
Bom, é difícil crer que Stephen Schwartz, compositor da obra, tenha construído essa estrofe de forma completamente despretensiosa. E foi justamente ela que despertou minha primeira suspeita sobre a natureza do relacionamento entre as personagens ao assistir ao espetáculo pela primeira vez. Evidentemente, um musical que está em cartaz há mais de 20 anos e que conta com uma gama imensa de atrizes diferentes interpretando os papéis, nem sempre trará a mesma representação dessa relação. Algumas optam por uma abordagem mais fraternal, o que também é uma escolha artística interessante, mas não posso deixar de sentir (e aqui vai uma opinião bem pessoal de alguém que já viu mais de vinte versões diferentes do show) que as Glindas e Elphabas mais homoafetivas entre si, são também as mais multifacetadas. Katie Rose Clarke, atriz que mais vezes viveu Glinda nos palcos, é o maior exemplo disso: Sua interpretação é marcada por delicadas nuances de desejo sáfico, algo emocionante de se ver vindo de uma pessoa tão familiarizada com a personagem. E não podemos deixar de mencionar Ariana Grande, que tem feito um excelente trabalho em traduzir esse anseio para as telas do cinema.
Aos que já assistiram ao clássico da Broadway, o desfecho é decepcionante: [spoiler alert] Elphaba opta por deixar Glinda para trás e permite que ela continue acreditando em sua morte. Existe alguma chance de que Wicked: For Good, o filme que traz o segundo ato e a conclusão dessa história, seja diferente? Talvez, mas até certo ponto. Não há como mudar grandes acontecimentos sem prejudicar toda a estrutura da obra, e o diretor Jon Chu, como grande fã de Wicked, não se atreveria a fazê-lo. Porém, muitas coisas podem ser acrescentadas, e pelo visto, vão! Diferente de como foi com o primeiro filme, o trailer de Wicked: For Good trouxe uma infinidade de cenas completamente inéditas, sendo a maioria delas justamente focadas em Gelphie! Espera-se que a relação das duas nessa segunda parte seja muito melhor explorada do que na versão de palco, fazendo com que a decisão final de Elphaba tenha uma carga dramática ainda maior. E fica aqui a nossa torcida para o filme acabar com Glinda recebendo pelo menos um sinal de que Elphaba está viva e bem.
Oz tem um histórico profundamente queer, desde o filme O Mágico de Oz (1939), estrelado por Judy Garland, que teve um impacto cultural tão significativo na comunidade LGBT+, que a expressão “amigo de Dorothy” passou a ser usada como código para que pessoas da comunidade pudessem se identificar discretamente entre si. E com Wicked, não é diferente. O apelo homossexual da visão criativa do diretor Joe Mantello e do compositor e liricista Stephen Schwartz se faz muito presente na construção dessa história sobre amor, escolha e resistência, que dialoga diretamente com as vivências de pessoas marginalizadas em busca de pertencimento. Gelphie jamais deixará de ressoar com essas pessoas.
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“Gelphie é real”, escreveu Maguire em um autográfo |
Poderíamos passar horas analisando as declarações, os textos, as encenações e os recibos deixados por quem construiu essa narrativa, mas no fim das contas, Gelphie vai além do cânone. É sobre o sentimento coletivo que duas “bruxas” tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão parecidas em suas lutas internas, despertam em toda uma comunidade que se sente abraçada e vista ao testemunhar como um amor tão improvável pode fazer com que sejamos mudados para sempre.
Texto de Fernanda “Ferbs" Pinheiro
Revisão: Tiago Samps e Clara Silvestre
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