O RITUAL: a ironia de um filme católico pecar tanto | REVIEW QUE NINGUÉM PEDIU
O Ritual mal ambienta os personagens presentes na trama e já introduz Emma, mesmo que indiretamente, por seus relatórios psiquiátricos. A partir daí, todos os diálogos e cenas do filme passam a envolvê-la de alguma forma. Digo isso sem exagero algum: são todos os diálogos. E isso me revolta porque, pelo pouco que sabemos dos demais personagens, inclusive do Padre Steiger e do Padre Theophilus, ambos também protagonistas, todo mundo ali teria uma história incrível a ser contada. E não acho que deveriam ser contadas, porque daí o filme seria outro. Mas a regrinha do “show, don’t tell” que tanto se usa em livros (e até em filmes) poderia ser aplicada maravilhosamente bem aqui.
Por exemplo, logo no segundo ritual percebemos que o Padre Steiger tem um tesão reprimido que beira o absurdo. E a Emma — ou o espírito possuindo a Emma — também percebe, o que nos dá a cena incrível do coitado do padre sendo obrigado a colocar a mão no peito dela pela própria e ficando terrivelmente sem graça. Arrisco dizer que essa é a melhor cena do filme, até porque é a única em que a câmera mostra a cena inteira em vez de focar no rosto dos atores com um zoom à la The Office. Mas isso nem é a melhor parte dessa trama. É perceber que não apenas o Steiger tem tesão reprimido, mas que é especificamente pela irmã Rose. E que é correspondido! Mas em vez de mostrar sutilmente ao longo do filme a relação entre os dois, temos duas cenas com certa química entre os atores, para, logo após a segunda, no sexto ritual, a Emma-que-não-é-Emma gritar pra todo mundo que a freira é uma vagabunda e que o padre quer comer ela. E sabe a reação de todo mundo com essa informação chocante? Nenhuma. Ninguém fala nada, ninguém faz nada e a história segue como se isso nunca tivesse acontecido. Inclusive em relação aos envolvidos, porque depois temos algumas cenas dos dois sozinhos e nenhum parece sentir o mínimo de vergonha ou culpa católica.
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Namore alguém que te olhe assim |
Fora isso, alguns outros pontos foram pouco aprofundados também. A própria história da possessão da Emma é jogada em um diálogo meia boca de uns cinco minutos do Padre Theophilus explicando por que a paróquia não deveria desistir da Emma. E eu realmente não entendi o porquê. “Não desista dessa menina porque ela comeu comida amaldiçoada pela tia, que era amante do pai, e por algum motivo ambos decidiram que era melhor entregar a filha/sobrinha pro demônio que matar a mãe dela pra poderem se casar!” (em 1928 ainda não existia separação/divórcio, aparentemente). Eu, se fosse o Steiger, já teria chutado essa menina da paróquia no momento em que ela arrancou o couro cabeludo da freira que eu quero comer. Mas, perdendo essa primeira oportunidade, ainda daria para expulsá-la quando ela esmagou a mão de outra freira. Ou quando ela deu um socão na cara de outra. Eu realmente não entendi, ao longo de todo esse filme, como o Steiger desenvolveu mais empatia por uma menina que conheceu há poucos dias — e de quem não sabe muita coisa, além de que a mãe morta era corna — que pela equipe que trabalha com ele há, presumo eu, anos. Digo “presumo” porque, como dito anteriormente, não sabemos a história de nenhum personagem para além do exorcismo.
Inclusive, a história do Steiger também é jogada de qualquer forma e só dentro do contexto do ritual. Sabemos que o irmão dele morreu de forma trágica, mas isso só é revelado na mesma conversa em que o Theophilus conta a história da Emma. E com um propósito muito específico: explicar que o Steiger está com dificuldade em se conectar com sua fé porque o nome de seu irmão era Michael (Miguel, em português). E isso é o que tem travado ele nos exorcismos. Fora a história da mãe corna da Emma e do irmão do Steiger, o único fragmento de passado que temos é o do padre Al Pacino (Theophilus. Mas que nome feio!), que conta que Emma foi seu primeiro caso de possessão e, na época, por falta de conhecimento e experiência, acabou desistindo dela, mas não está disposto a cometer esse erro novamente. Esse é o único personagem que entendo não desistir da mulher que acabou com a saúde mental de todas as pessoas da paróquia, inclusive dos frequentadores, vide um idoso que aparece em uma cena após a missa gritando “o diabo está aqui!”, ou algo assim. E é só isso que temos de pessoas externas ao clero também. Em todas as cenas ambientadas na parte da igreja que deveria ser frequentada por outras pessoas, só vemos o padre, às vezes uma freira, às vezes os coroinhas. A igreja foi fechada? Não sabemos. Não mostram.
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Eu também não ficaria na igreja se entrasse e desse de cara com o Al Pacino |
Fora essa falta de profundidade de qualquer personagem, a atuação também deixa a desejar. Al Pacino, apesar de bom ator, não me parecia estar muito a fim de gravar esse filme e, embora entregue bem mais que o restante do elenco, não teve muito destaque. Abigail Cowen deu o melhor de si e conseguiu realmente entregar duas personagens completamente diferentes: a Emma possuída, depravada, raivosa e sem papas na língua, com reações quase que primais aos rituais a que é submetida; e a Emma normal, vulnerável, meio tímida, que carrega bastante melancolia no olhar e que claramente está exausta de tudo pelo que está passando. Ela não precisava ser tão boa nesse filme, mas brilhou bastante. Já o Dan Stevens tem a exata mesma expressão de confuso durante todo o filme. De certa forma, casa bem com o personagem, porque o Steiger é bem cético no início do exorcismo e está em constante dúvida sobre o que estão fazendo ao longo de todos os rituais. Acho que, nesse sentido, criticar a atuação de Dan Stevens seria tipo criticar a atuação de Kristen Stewart em Crepúsculo: a Bella é sem sal! Kristen brilhou ao não entregar carisma nenhum. Dan também brilhou ao parecer que não tinha lido nada do roteiro além de suas próprias falas antes de começar a gravar. A cara de perdido é o charme, é camp. O resto do elenco só é ruim mesmo. Incluindo, ainda no tema Crepúsculo, a tão adorada atriz de Alice, Ashley Greene, que aqui tenta dar vida à irmã Rose, não se destaca em nada das demais freiras e traz pouquíssima nuance em sua — falta de — expressão facial, o que não justifica em nada as cenas de Rose se olhando no espelho questionando sua fé. Essa falta de nuance é notada, principalmente, na cena em que Rose rasga o véu. Primeiro, ela está olhando para o curativo em seu couro cabeludo (arrancado por Emma) com a mesma expressão neutra que mantém durante o resto do filme. Segundos depois, ela está rasgando seu véu com raiva e uma mágoa que só vemos nessa cena. No resto do filme, ela segue com o mesmo rosto extremamente neutro.
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Consegues sentir o choque no olhar de Ashley Greene? |
Ainda sobre a história do filme, muitos aspectos dele aparentemente foram escritos com uma consultoria exclusiva da nossa queridíssima Manuela Dias. Algo que me impactou muito foi o diálogo feminista da madre superiora ao dizer que achava que o Steiger seria diferente desses padres que “apontam o dedo na cara das mulheres para mandar nelas”. Minha senhora, isso é a igreja católica. Uma instituição AMPLAMENTE conhecida por mandar e desmandar em mulheres. Temos também, no mesmo tom da utopia pós-racial do Brasil em Vale Tudo, uma freira negra no clero. O que estaria tudo bem, não fosse em um país extremamente conhecido por segregar pessoas negras e brancas com respaldo legal para isso até 60 anos atrás. Tenho minhas ressalvas com obras históricas que ignoram o racismo, porque isso geralmente parte de pessoas brancas que querem ocultar a parte “feia” da história delas, enquanto histórias reais de freiras negras que eram ignoradas e ocultadas por igrejas brancas são deixadas de lado. E, não à toa, não me surpreendi ao ver que o diretor David Midell é, de fato, um homem branco. Ao ignorar questões históricas de opressão em um filme que se propõe a ser a história real de O Exorcista, David mostra que sua preocupação em retratar a realidade de minorias da época é menor que a vontade de parecer um aliado. Isso é um debate que estou disposta a ter com qualquer pessoa que me convide, mas, para mim, se tornou um dos pontos negativos do filme.
Destacando agora os aspectos mais positivos do filme, eu gosto da dúvida constante do Padre Steiger acerca da condição da Emma ser mesmo espiritual ou algo médico. Ele, inclusive, confronta o Padre Al Pacino diversas vezes sobre isso ao longo do filme, exigindo que ele permita que um médico visite Emma para verificar seu estado. É levantada até a hipótese de epilepsia, detalhe que achei interessante, pois, de fato, convulsões já foram consideradas um sinal de possessão ao longo da história. E essa ânsia do Steiger para descobrir a real causa do problema de Emma, para evitar que torturem a menina psicologicamente com diversos rituais e agravem mais sua condição, é realmente admirável. Admirável mesmo, até quando Emma derruba uma mesa e quebra sua cama com a força da mente, ele ainda levanta a hipótese de ser uma condição médica. É desse tipo de persistência que precisamos no mundo. Por mais padres Steiger.
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Eu quando tenho uma pneumonia |
Acho interessante também o colapso mental atingindo o clero inteiro (menos o Padre Al Pacino, porque ele é o Al Pacino). As freiras desesperadas são até que padrão para esse estilo de filme. Mas a forma como a irmã Rose conversa com o Steiger sobre não conseguir mais ouvir Deus e as dúvidas que tem sobre sua fé foi uma ótima cena. A cena do Steiger se acabando de chorar na frente da igreja também. É realmente uma situação difícil e fico feliz que essas reações extremas foram mostradas de forma tão crua. Esse foi definitivamente o ponto alto do filme pra mim.
Em aspectos técnicos, o filme peca bastante também. Veja bem, não sou nenhuma cineasta famosa ou crítica de cinema especializada, meu olhar nessa questão é de designer. Então quando eu digo que peca bastante, é porque ATÉ EU percebi. A questão que mais me incomodou foi a câmera. Eu realmente não consegui ficar imersa no filme, porque a forma como foi filmado tornou isso impossível. O primeiro ponto é que ele é filmado com a câmera meio trêmula, imagino eu que para dar a impressão de algo caseiro, íntimo. Mas veja bem: eu não consegui comprar em momento algum que a câmera de 6 mil dólares usada para captar até os poros dos atores era uma filmagem caseira. Não usaram nem um preset do Premiere com uma granulação, um filtro meio sépia ou uma vinheta ao redor da cena. Acho que eu, inclusive, gostaria mais desse filme se ele fosse gravado de um Samsung A50. Seria camp, seria caseiro, íntimo, corajoso, ousado. Eu aplaudiria de pé. Fora a tremedeira do câmera ansioso, chuto que uns 85% desse filme são cenas com um zoom absurdo na cara dos atores num estilo bem The Office mesmo. Consigo contar nos dedos os diálogos em que vemos ambos os atores na cena ao mesmo tempo. A não ser que o ombro embaçado do outro ator na frente da câmera conte, daí podemos dizer que em todas as cenas têm pelo menos dois atores presentes. Não bastando a câmera tremida e o zoom, há também um corte muito abrupto e rápido em diversas cenas que deveriam ter bastante impacto. Se você piscar, perdeu. Isso inclusive me aconteceu em um momento. Pisquei, perdi uma cena que imagino ter tido impacto pelo som característico de sustos em filmes de terror, mas nunca mais mostraram o que aconteceu naquela cena. Fica entre o elenco e quem não teve a infelicidade de ter o olho ressecado naquele milésimo de segundo.
Para além do jogo de câmeras, a trilha sonora acaba sobrecarregando demais e não deixando espaço para a construção do suspense e da expectativa. Eu até comecei a assistir o filme sem ter certeza se Emma seria mesmo exorcizada ou se morreria no processo, mas assim que a cena final começou, também começou uma música emocionante de fundo, do estilo que vemos em final de filme evangélico. Trouxe até certa confusão religiosa enquanto assistia a essa parte do filme. Não é um drama, não é um romance, não sei a quem esperavam emocionar com essa trilha sonora. Eu, certamente, se chorei em três filmes de terror/suspense ao longo da minha vida, foi muito. E duas dessas vezes eu garanto que foi de medo.
Com isso, posso dizer com tranquilidade…
VEREDITO: ★½
O Ritual peca em história, peca em construção de personagem, peca em quesitos técnicos e é extremamente irônico um filme católico que peca tanto. Apesar disso, os aspectos positivos são bem positivos e compensam a experiência de assistir a tantos pontos sem nó. Não é ruim o suficiente para divertir, é apenas morno e deixa na boca o gostinho do que poderia ter sido.
Texto de Juniper Robyn
Revisado por Vandercleo Junior e Fernanda “Ferbs” Pinheiro.
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