Afinal, por que não pode haver um 'Pantera Negra' branco?

Nas últimas semanas, no dia 9 de setembro, a Disney liberou na internet o primeiro teaser trailer da adaptação em live-action de A Pequena Sereia, um clássico filme animado de 1989. Este pequeno teaser de pouco mais de 1 minuto mostra Ariel cantando um trecho de Part of Your World, e só isso foi o suficiente pra instaurar uma guerra na Internet a semana inteira!

Isso porque a nova Ariel é interpretata por Halle Bailey, uma cantora e atriz americana.

Nada de errado até agora, certo? Afinal, a Ariel tem duas características imutáveis: ela é uma sereia e possui uma voz angelical, então nada mais certo do que escalar uma cantora para o papel da personagem.

Mas obviamente uma parcela dos internautas não se conformou com um certo detalhe completamente insignificante para a produção: Halle é negra.

Halle como Ariel no teaser de A Pequena Sereia (2023)

Mais uma vez o nerdola se sentiu atacado por uma personagem originalmente caracterizada como branca sendo interpretada por uma atriz negra, e mais uma vez aquele maldito argumento foi usado por eles: "E se fizessem o contrário? E se o Pantera Negra fosse branco?"

Internautas racistas exaltam fanart de um 'Pantera Negra' branco.

Acontece que já foi feito o contrário. Várias vezes, e não só com pessoas negras:

Ra's Al Ghul, um clássico vilão ÁRABE do Batman foi interpretado por Liam Neeson, um baita ator... britânico. Ninguém nunca reclamou disso.

Bane, outro vilão do homem-morcego e Latino, foi interpretado por Tom Hardy, também britânico.

A Feiticeira Escarlate, uma Vingadora de origem Romani, por muito tempo conhecida como filha de um sobrevivente do holocausto e mãe de um menino judeu, que ficou muito popular nos últimos anos, no Universo Cinematográfico da Marvel é interpretada por Elizabeth Olsen, uma atriz americana que já desrespeitou a origem da personagem mais de uma vez. Em Vingadores: Era de Ultron, a personagem foi voluntária de experimentos da HYDRA, uma organização abertamente nazista.

A Anciã, tutora do Doutor Estranho interpretada por Tilda Swinton, que apesar de ser outra atriz talentosa, interpretou um personagem que originalmente era homem e asiático. Um caso grave de whitewashing, mas que na época focaram em reclamar apenas sobre a mudança de gênero (que era o de menos na adaptação).

Por fim (nesse artigo, porque se fosse pra listar todos os personagens de cor que sofreram whitewashing, eu precisaria fazer um texto só para isso) tivemos recentemente Cecilia Reys, uma mutante negra e porto-riquenha que foi interpretada pela atriz brasileira – e branca – Alice Braga em Novos Mutantes.

Ra's Al Ghul, Wanda Maximoff, Bane, O Ancião e Cecilia Reyes

Falando nesse filme, ele tem mais de um problema com racismo, e o menor deles é a Illyana Raspytin ter sido transformada em uma personagem preconceituosa sem razão alguma, fazendo xingamentos racistas gratuitamente direcionados a Danielle Moonstar, uma personagem nativo-americana (e a única que não sofreu whitewashing nesse filme).

Além da Dra. Reyes, outro personagem negro nesse filme também foi vítima de whitewashing: Roberto da Costa, o Mancha Solar, que foi interpretado pelo ator – também brasileiro – Henry Zaga. Mas o maior problema com essa troca (lê-se apagamento) é que pra esse personagem ser branco, TODA a sua origem precisa ser alterada.

Nos quadrinhos, Roberto é um jovem mutante brasileiro e rico, membro dos X-Men e dos Vingadores criado em 1984.

Em sua história de origem, os poderes do Mancha Solar, assim como o de qualquer mutante, despertou durante um momento crítico de sua vida. Nesse caso, foi durante um jogo de futebol onde Roberto sofreu RACISMO dos jogadores do time adversário.

No filme, como Henry Zaga não é um ator melaninado, essa origem precisou ser levemente alterada, e na história os poderes de Roberto despertaram na a puberdade durante "um momento quente com sua namorada". Não tem o mesmo peso, tem?

Acha que está feio? Calma que piora. Ao ser questionado sobre a troca de etnia do personagem, o diretor do filme Josh Boone disse:

"Talvez, se Henry não existisse, eu teria encontrado alguém com pele mais escura. Eu não liguei muito para a questão do racismo que eu ouvi no Brasil, sobre peles mais claras e peles escuras. Pra mim, eu quis representar o Brasil de uma forma positiva e eu quis encontrar alguém que pareça que tem um pai incrivelmente rico, e Henry personificava isso."

Além de evitar todo o tempo chamar o personagem de negro, o diretor disse, com todas as palavras, que escolheu um ator branco por ele parecer com alguém rico. Não acho que eu preciso falar mais sobre o que é essa escolha. Até porque o diretor apagou não um, mas dois personagens originalmente negros do filme.

E quem dera esse problema ficasse apenas nos filmes. Uma caracterização racista em uma adaptação em live-action abre margem pra um colorista racista embranquecer o mesmo personagem no material original, e isso aconteceu com o próprio Mancha Solar.

Post do user @kispesan no tumblr sobre a inconsistência (causada pelo whitewashing) de Roberto Da Costa nos quadrinhos.

E não só com ele, o caso mais recente foi com a heroína Miss America. A personagem foi adaptada para o live-action no filme Doutor Estranho no Multiverso da Loucura e foi interpretada pela atriz Xochitl Gomez, que apesar de ser latina, não é negra como a personagem.

Xochitl Gomez como America Chavez

Na época do anúncio isso foi sim discutido pelos fãs e não apenas pelo colorismo, mas também pela idade errada da atriz que é um pouco mais nova que a America nos quadrinhos, mas nos quadrinhos a heroína foi recentemente anunciada como membro da nova formação dos Thunderbolts e os leitores perceberam uma pequena diferença na personagem... que foi embranquecida.

Prévia de Thunderbolts (2022) #1

Depois de muitas reclamações dos leitores, a Marvel Comics mandou o colorista Javier Tartaglia consertar a cor de pele da personagem, e quando a HQ saiu no dia 31 de Agosto, America Chavez era afro-latina como sempre foi.

Prévia de Thunderbolts (2022) #1 consertada após reclamações dos leitores

Entendem agora por que não pode fazer o contrário? Como isso apaga a existência dos já poucos personagens de cor que temos?

São poucos os personagens brancos cuja origem depende de ser branco. Mas são muitos os personagens que a história é rica justamente pela sua etnia, e é essa a razão de um Pantera Negra branco não funcionar.

Pra escalar um homem branco como o Rei T'Challa, é necessário jogar fora o fato dele ser o monarca de uma nação africana que nunca foi colonizada.

'Pantera Negra' (2018) faz uma homenagem a diversas culturas africanas que foram incorporadas a mitologia de Wakanda.

E claro, o detalhe mais importante: a nova geração de espectadores pode agora se ver em um personagem protagonista. Pode não ser o objetivo das empresas, que visam o dinheiro do público através desse discurso progressista, mas é uma consequência extremamente positiva dessa ascenção da representatividade na cultura pop e nerd (e já falei sobre isso aqui no blog).

Crianças pretas reagindo ao trailer de 'A Pequena Sereia' (2023).

Então não, não pode ter um Pantera Negra branco. Transformar qualquer personagem de cor em uma pessoa branca é apagar grupos que foram negligenciados no cinema e na televisão por MUITO tempo, e na maioria das vezes esses personagens possuem uma carga cultural que uma adaptação branca não seria capaz de manter.

"Representatividade só não é importante pra quem já tem" – Pablo Peixoto em uma postagem no Twitter sobre a (maravilhosa) reação das crianças ao trailer de 'A Pequena Sereia'.