O preocupante embranquecimento do Mancha Solar nos X-Men
Se você acompanha a cultura nerd, é muito difícil que você ainda não tenha assistido X-Men '97, a nova série da Marvel que, além de uma continuação da série clássica dos heróis mutantes dos anos 90, também é a primeira produção da Marvel Studios (mais especificamente do departamento de animação deles) que foca nos X-Men, um dos carros chefes da editora desde sua estreia nos quadrinhos em 1963.
Nessa temporada, para contextualizar o público que chega sem a bagagem da série original, eles introduziram um novo personagem: Roberto Da Costa. Rapidinho ele caiu no gosto do público, afinal, a gente adora ver uma produção internacional com um ator ou um personagem (melhor ainda, quando os dois) são brasileiros.
Na série, Roberto (ou simplesmente Beto) é um menino, filho de família rica, que depois de ser resgatado pelos X-Men, se aproximou da Jubileu (a única estudante adolescente do Instituto Xavier) e da equipe pra conhecer mais sobre o mundo ao lado de gente como ele. Beto esconde o fato de ser um mutante da sua família, e seu desenvolvimento se dá no processo de se aceitar como um e se assumir pra sua família, fazendo uma clara alusão a jovens que passam anos dentro do armário e lutam internamente pra se aceitar e serem aceitos por suas famílias.
Linda história, necessária não apenas hoje, mas sempre será. Inclusive, esse tipo de alegoria não é novidade em X-Men e já foi feita com o Homem de Gelo no filme de 2003.
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X-Men 2 (2003) Direção: Bryan Singer |
Infelizmente, essa não foi uma alegoria que foi simplesmente incluída na história de Beto. Ela substituiu a parte que, e note que não digo que "provavelmente é"... Eu te afirmo que é a mais importante da história dele como personagem e super-herói: ele é negro.
Nos quadrinhos, logo na sua primeira aparição em Os Novos Mutantes (1982), conhecemos Beto durante uma partida de pelada (futebol de rua, para os leigos) em que os jogadores do time rival começam a cometer racismo contra ele. Foi durante esse momento de raiva que os seus poderes despertaram, levando-o para o Instituto Xavier, onde se tornou o Mancha Solar.
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Marvel Graphic Novel #4 (1982) "Os Novos Mutantes" Roteiro por Grant Morrison. |
Assim como todo jovem negro, que precisa se esforçar o dobro pra ser reconhecido como outros moleques brancos, Beto, mesmo nascido rico, compartilha disso. Sua personalidade extrovertida e atitudes compensatórias fizeram com que ele, por exemplo, comprasse a I.M.A (a Ideias Mecânicas Avançadas, uma empresa de cientistas do mal) e usasse ela pra financiar seu próprio time de Vingadores. Tudo com Beto é grandioso e, não à toa, é o membro dos Novos Mutantes que mais deu certo fora da equipe depois (ou junto) da Illyana Rasputin.
Beto é filho de um pai negro e uma mãe branca, e apesar do cabelo cacheadinho, tem a pele negra. Pelo menos tinha, porque com o passar dos anos, diversos artistas (dentre ilustradores, coloristas e editores) começaram a colorir o personagem gradativamente mais branco, ou desenhá-lo com traços mais finos ou cabelo menos cacheado.
Esse embranquecimento gerou filhos, o primogênito nos anos 2000, na primeira adaptação do Beto em X-Men Evolution. Apesar da pele escura, o cabelo já veio bem diferente do visual original do personagem.
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Beto nos anos 80 (quadrinhos) e nos anos 2000 (X-Men Evolution) |
O problema veio mesmo na primeira aparição em live-action do Mancha Solar no filme Dias De Um Futuro Esquecido (2014), em que Adan Canto foi escalado pra interpretar. Além de branco, o ator também não é brasileiro, mas mexicano. Foi uma aparição menor, sim, mas não significa que uma representação fiel não seja importante – principalmente quando o número de atores e personagens negros no elenco desses filmes dos X-Men é ridiculamente pequeno.
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Adan Canto em X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (2014) também do diretor Bryan Singer. |
No início dessa década, no filme dos Novos Mutantes (2020), com a escalação de Henry Zaga como Beto, finalmente conseguimos um ator brasileiro, mas também branco interpretando o personagem. Dessa vez, a origem inteira do personagem foi trocada e ao invés de ativar seus poderes durante um episódio de racismo, o Mancha Solar se descobriu um mutante enquanto perdia a virgindade.
A polêmica com Henry Zaga é ainda maior porque evidencia o racismo por trás de todas essas escolhas de casting pro Beto. O próprio diretor, quando confrontado pela escolha, afirmou que nos testes para encontrar o ator a procura era por atores que passassem a postura de jovens ricos, e deu a entender que seria difícil encontrar um ator negro ideal.
"Talvez, se Henry não existisse, eu teria encontrado alguém com pele mais escura. Eu não liguei muito para a questão do racismo que eu ouvi no Brasil, sobre peles mais claras e peles escuras. Pra mim, eu quis representar o Brasil de uma forma positiva e eu quis encontrar alguém que pareça que tem um pai incrivelmente rico, e Henry personificava isso."
– Josh Boone.
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Henry Zaga em Novos Mutantes (2020), filme dirigido por Josh Boone. |
Só que, quando se apaga um detalhe com uma origem tão definida quanto sua raça ou etnia, você automaticamente desfaz dele por completo.
De um personagem que representa meninos em uma classe social que raramente se vê atrelada a sua cor, se mostrando poderoso como homem negro e como herói mutante, Beto acaba se tornando mais um playboy mimado que se desenvolve quando aprende a ser humilde. E nem é o playboy do tipo carismático, como Tony Stark. É genérico.
E apesar de X-Men ser o espaço pra se fazer alegorias sobre qualquer pessoa que sofra de preconceito (seja LGBTQIA+, PCD, pessoas não brancas ou imigrantes) nenhuma característica devia ser apagada para dar espaço a outras. Afinal, o Beto poderia servir de representatividade para meninos lgbt que sofreram preconceito, desde que a origem do personagem não fosse trocada – Como foi o caso do Bobby, o Homem de Gelo, lá em 2003!
Como eu já disse, X-Men '97 foi a produção a adaptar dessa forma a origem do Mancha Solar, mas vai além disso: a série animada escalou Gui Augustini, um ator brasileiro, mas também branco pra dar voz ao personagem no idioma original (a série inclusive tem umas inserções de português nos diálogos que são bem legais), com algumas incongruências na coloração do personagem, que as vezes aparece ainda mais claro.
Mesmo nos quadrinhos, onde o personagem nasceu de pele retinta, cabelo enrolado e traços marcados, poucos são os artistas que parecem se importar com isso, e a possibilidade de você leitor se deparar com um personagem que com nada se parece com o Beto é altíssima. Para se ter uma noção, já tentaram até apagar o charme latino dele tentando mudar seu apelido pra "Berto".
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Roberto da Costa ao longo dos anos (1982 até 2015) Imagem por @kispesan (Tumblr) |
Quando criticado pela escalação do Gui como Beto, Beau DeMayo, o produtor de X-Men '97, chamou as críticas de "inválidas" e se ausentou do twitter até a poeira baixar mas assistindo a série, percebemos o esforço que ela faz pra não lidar com os personagens negros da equipe.
A Tempestade perdeu seus poderes logo no segundo episódio da série, e isso acabou causando sua ausência em metade da temporada. O episódio focado na linda jornada pessoal de Ororo foi dividido em dois pra serem exibidos do lado de histórias como da Jubileu e do Professor X, porque aparentemente não faria sentido um episódio inteiro focado só na Rainha dos Elementos.
O Bishop, que precisou aparecer em todas as temporadas da série clássica pra fazer parte da equipe, nessa nova versão acabou saindo de tela no episódio 3 pra nunca mais aparecer!
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Bishop e Tempestade no Episódio 1 de X-Men '97 (2024) "A Mim, Meus X-Men" Dirigido por Jake Castorena |
Tudo isso, somado ao embranquecimento (na pele e na origem) do Beto, deixa evidente um padrão racista dentro da produção. Questiono-me se essa foi pelo menos uma das razões da demissão de DeMayo da Marvel Studios na semana de estreia da série... Mas duvido, visto que não foi primeiro e também não foi o último caso de whitewashing que a adorada Casa das Ideias comete nas suas adaptações.
Apesar da série ter sido excelente em diversos pontos (que eu citei na review que ninguém pediu), é muito importante que mantenhamos o discurso ativo contra o embranquecimento ou apagamento de personagens negros, principalmente em obras como as dos X-Men, que se vendem justamente no espaço alegórico para pessoas que sofrem preconceito.
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Capa variante de X-Men Red (2022) #9 ilustrada por Taurin Clarke. |
– Texto por Tiago Sampaio.
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