EMILIA PÉREZ: latinidade aos olhos de colonizadores.

No início deste mês de fevereiro, estreou nos cinemas brasileiros um filme que vem dando o que falar em todo o mundo desde que lançou internacionalmente em novembro: Emilia Pérez. A princípio, o filme foi elogiado pela crítica americana por contar uma história forte, diferente e corajosa, conquistando 8 indicações ao Globo de Ouro (com 4 vitórias) e segurando 13 indicações ao Oscar, e provavelmente vai levar uma quantidade boa também.

O filme é concorrente direto de Ainda Estou Aqui nessa temporada de premiações tanto como Melhor Filme, quanto Melhor Atriz principal. A diferença é que, enquanto o sucesso brasileiro conquistou tanto o seu público nacional quanto os gringos, a aclamação de Emilia Pérez se restringe apenas aos americanos e europeus. Assim que o filme chegou ao México (que é, inclusive, onde o filme se passa), sua reputação começou a mudar e cair. E com razão! O longa, escrito e dirigido por Jacques Audiard, e conta uma história que a princípio, ouvindo a ideia base, realmente é interessante: uma ex traficante transgênero decide mudar de vida completamente e enfrenta as consequências do seu passado no narcotráfico. O problema é que dois assuntos tão sérios como transgeneridade, que é tão escassa de representatividade no audiovisual, e o narcotráfico na América Latina, que só no México já matou 500 mil pessoas, são tratados banalmente, sem absolutamente nenhum trabalho decente de pesquisa por trás.

Jacques Audiard é um cineasta francês que nada sabe sobre vivência latina e trans, e se mostrou extremamente preconceituoso mesmo depois do lançamento do filme. Como se não bastasse o filme ser completamente protagonizado por atrizes gringas, o espanhol das músicas é completamente equivocado, tendo sido claramente escrito sem nenhum auxílio de um supervisor que sequer falasse espanhol, o próprio diretor afirmou não ser preciso conhecer da cultura mexicana para fazer um filme sobre o México e que “o espanhol é uma língua de países subdesenvolvidos, de pobres e de imigrantes”.

Claro que o resultado de um filme “latino” nas mãos desse cara seria desastroso, né? O filme trata todo mexicano como um possível criminoso, com todos os personagens sendo coniventes e passíveis a violência. Mesmo as protagonistas sendo ricas, de orçamento ilimitado, elas só frequentam lugares chiques quando estão na Europa. Por exemplo: quando Emilia (Karla Sofía Gascón) e Rita (Zoe Saldaña, a parte mais decente do filme) se reencontram pela primeira vez, elas estão em um restaurante chique em Londres, mas após retornar para o México, todas as suas refeições fora são em feiras de rua, como se o México não tivesse opções melhores a oferecer.

A escolha de contar sobre algo que assola a América Latina através de um musical dificilmente funcionaria mesmo se bem feito, mas Clément Ducol e Camille Dalmais sequer se esforçam para o filme funcionar nesta proposta, com músicas não apenas ruins, mas que quebram todo o clima do filme.

Como se não bastasse o descaso com a latinidade, Audiard também não fez questão alguma de trazer uma representação decente de transgeneridade. Como um homem cis, seus preconceitos transpassaram para alguns momentos do filme que deviam ser vistos como fofos. Por exemplo: quando o filho de Emilia (que acredita ter perdido seu pai há 4 anos) a conhece como sua “tia”, ele a reconhece por ter o mesmo cheiro de seu pai. Não por usar o mesmo perfume, mas por ter o mesmo fedor. Algo impossível visto que a personagem estava em terapia hormonal por uns 6 anos, e o cheiro natural de qualquer pessoa transgênero muda depois de um longo tratamento de hormônios.

Mas, se o filme é tão ruim e tem uma representação tão porca do que se propõe a “exaltar”, por que fez tanto sucesso?

Ora, não é de hoje que a Academia premia filmes não tão bons por considerarem eles corajosos. É fato que vivemos uma era mais progressista nos últimos anos (e o nascimento do Nerd•ish Journal se deve exclusivamente a este fato!), e com isso vieram as inevitáveis críticas à Academia em relação aos seus critérios na votação do Oscar, que vive premiando brancos, com todo respeito, medíocres, e colocando mulheres e pessoas de cor (e incluo asiáticos, obviamente) em categorias apenas honorárias, isso se colocados em algum espaço.

Na última década, a academia vem tentando mudar esta imagem premiando filmes com histórias focadas em pessoas de cor, histórias de amor homoafetivo, filmes mais “diversos” — e causou escândalo quando começou a fazer isso. Lembram do alvoroço por Moonlight, de Barry Jenkins, ter ganhado o Oscar no lugar de La La Land em 2017?

Houve um equívoco na premiação de 2017 em que La La Land foi anunciado como o vencedor de Melhor Filme. Quando foi anunciado o verdadeiro vencedor, o elenco de Moonlight subiu para receber o prêmio enquanto o elenco do filme de Damien Chazelle ainda estava no palco. Há quem chame o que aconteceu com La La Land de injustiça.

PORÉM, caso o “filme da diversidade” tenha sido idealizado por uma pessoa branca, MUITO MELHOR!

Greenbook, um filme sobre racismo escrito e dirigido por um homem branco (Peter Farrelly), foi o grande premiado do Oscar de 2019, mesmo competindo com Infiltrado na Klan, do grandioso Spike Lee.

Emília Pérez não é o primeiro filme sobre uma mulher trans latina, não será o último, e com certeza não vai ser o único musical também. Mas é o primeiro que carrega os mesmos preconceitos que os cineastas e jornalistas críticos das premiações norte-americanas e europeias têm.

A essa altura, percebe-se que esse texto não é, ao menos por completo, uma Review (que muita gente pediu), mas outro tipo de crítica. Esse “Balão de Pensamento” que trazemos hoje visa abrir os olhos para uma opinião mais crítica sobre o que é aclamado por quem despreza a nossa realidade. Não é justo aceitar migalhas em histórias mal escritas, onde brancos são a salvação na vida de pessoas de cor (o clássico Whitesavior, que está presente em Greenbook e até no próprio La La Land), ou histórias carregadas de preconceito apenas porque “somos vistos”. Não vale a pena ser visto se não for pelas nossas próprias lentes, e é por isso que é tão empolgante ter Ainda Estou Aqui indo tão longe, enquanto Emília Pérez continua sendo massacrado pelos dois grupos minoritários destacados em si.

E olha, toda essa crítica e nem deu tempo de citar as falas e ações isoladas da própria Karla Sofía Gascón, mas aí já estaríamos chutando cachorro morto

Caso queiram tirar suas próprias conclusões, Emília Perez, assim como outros indicados ao Oscar como Ainda Estou Aqui, Conclave, A Verdadeira Dor, AnoraSing Sing e Nosferatu estão em exibição nos cinemas, enquanto outros ainda devem chegar (como O Brutalista, que estreia no dia 20, seguido por Um Completo Desconhecido, que estreia dia 27) ou já estão disponíveis no streaming (como Duna: Parte Dois, no MAX).

Você pode conferir os indicados às principais categorias da Academia no post fixado no nosso Instagram, e se preparar para a cerimônia que acontece no dia 02 de Março, que, inclusive, vamos transmitir ao vivo e com tradução em tempo real no nosso canal no YouTube!

Texto por Tiago Samps

Revisão de Luisa De Luca

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