O Assassinato de Kamala Khan
Kamala Khan, a segunda Ms. Marvel da Marvel Comics, fez sua primeira aparição nos quadrinhos em 2013, nas páginas de sua antecessora e mentora, Capitã Marvel. Foi um rápido tease que nos dava uma ideia do que esperar de uma personagem legado, mas o que provavelmente ninguém antecipava era o status e a relevância que ela alcançaria em tão pouco tempo dentro da editora e na mídia de super-heróis em geral.
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Página de Captain Marvel (2012) #17 |
Em 2014, foi lançada sua primeira HQ solo, com roteiro e edição das geniais G. Willow Wilson e Sana Amanat, e ilustração de Adrian Alphona. E, logo de cara, Kamala já mostrou ao que veio — apesar de sua origem atrelada à Capitã Marvel e aos Inumanos (sim, ela é uma Inumana, e essa informação será de extrema importância no desenrolar dessa história), a personagem tinha seu próprio universo, seu próprio núcleo familiar e círculo de amizades compostos por personagens bem construídos e que enriqueciam sua narrativa, seus próprios problemas, seus próprios vilões e, principalmente, sua própria identidade.
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Capa de Ms. Marvel (2014) #1 |
Kamala é uma adolescente muçulmana, filha de imigrantes paquistaneses, vivendo em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Quando nas mãos da também muçulmana G. Willow Wilson e da também descendente de paquistaneses Sana Amanat, suas histórias carregavam um peso cultural muito rico, ao mesmo tempo que também dialogavam muito naturalmente com qualquer leitor adolescente, por trazer para esse cenário temas muito comuns como insegurança, preconceito, primeiro amor e pertencimento. Era fácil ler Ms. Marvel. Era gostoso. Era como se as páginas dos quadrinhos te abraçassem e te dissessem que você não estava sozinho. Era.
Em menos de dez anos, a popularidade de Ms. Marvel cresceu exponencialmente. Ela virou, ao lado de Miles Morales, a principal personagem do núcleo jovem da editora. Além de seu título solo, passou a liderar a equipe dos Campeões após uma rápida passagem pelos Vingadores, tornou-se cada vez mais presente nas animações para TV e streaming, foi protagonista do jogo de videogame dos Vingadores lançado em 2021 e, infelizmente finalmente ganhou sua própria série live action no UCM. A esse ponto, ninguém sabia o que estava por vir. Não fazíamos ideia de que o problema tinha começado muito antes…
Lembram da informação de que a personagem era uma Inumana? Pois bem.
A relação entre Kamala e os Inumanos sempre foi muito sólida, porém bem discreta. Se ela precisasse, eles estariam lá, e vice-versa. E foi essa discrição que permitiu que Kamala crescesse por conta própria. A "inumanidade" era uma parte de quem ela era e mais um espaço onde ela poderia pertencer, mas havia muito mais nela do que apenas isso. E uma das muitas coisas incríveis que Kamala Khan era, é a pupila de Carol Danvers.
Sua origem foi muito pautada em sua admiração pela Capitã Marvel (anteriormente Ms. Marvel). Fã número 1 da heroína, Kamala sempre se inspirou nos seus atos de heroísmo e não poderia ter escolhido outro codinome e nem vestir outras cores quando teve seu gene inumano ativado pela névoa terrígena e ganhou seus poderes. Eventualmente, finalmente conheceu sua ídola pessoalmente e, com o passar do tempo, as duas construíram uma relação muito próxima, com Carol se tornando basicamente uma figura de irmã mais velha para a nossa protagonista. Sempre presente em momentos cruciais — até discordando às vezes sobre questões importantes (Não Falamos de Guerra Civil II) — ficou bem intrínseco em toda construção da personagem que ela era, de fato, uma Marvel.
Mas, de novo, ela não era só isso.
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Relação entre Kamala e Carol |
Após o fracasso estrondoso da série de TV Inhumans, de 2017 (e se você não sabe sobre o que estou falando, bom pra você!), os personagens desse núcleo foram perdendo cada vez mais o espaço que já não era muito grande dentro da Marvel Entertainment. Isso nunca afetou a Ms. Marvel, é claro, já que ela era uma personagem independente, mas com a chegada da heroína ao UCM, de que forma a ligação dela com essa raça tão menosprezada pela editora poderia ser contornada ao contar sua história de origem para o público geral? Aqui vai uma dica: A Disney comprou a 21st Century Fox, e agora o UCM tem direitos sobre todos os personagens da Marvel previamente apresentados em filmes da Fox… como os X-Men.
Sim, Kamala Khan do UCM é uma mutante! E até aí, tudo bem. Isso não tem por que ser um problema, certo? É só no UCM, certo?... Errado.
Porque, infelizmente, ela voltou, a mais temida por todos os leitores de quadrinhos: A MCU SYNERGY (já abordada por Tiago Samps aqui no blog).
Insatisfeitos em arruinar a personagem em uma mídia, decidiram arruinar em todas!
Em uma narrativa absolutamente tonta dentro de uma HQ do Homem-Aranha DO PETER PARKER (nem pra ser do Miles Morales, o Homem-Aranha com quem Kamala realmente tem alguma relação), ela… bom, morreu. Literalmente e figurativamente também.
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Kamala morre em Amazing Spider-Man (2022) #26 |
E como nenhum personagem permanece morto nos quadrinhos (tirando o fracassado do Mar-Vell), ela ressuscitou. Para a alegria de ninguém.
A história da sua morte foi só um pretexto para que ela fosse ressuscitada e tivesse seu gene mutante ativado no processo. E a partir daqui, meus amigos, foi só ladeira abaixo.
Começando pelo redesign do seu traje, Kamala voltou despida de qualquer referência ou conexão com sua origem, seu passado e sua identidade.
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Redesign por Jamie Mckelvie (2023) |
Narrativamente, suas novas minisséries, “Ms. Marvel: The New Mutant” e “Ms. Marvel: Mutant Menace” trouxeram apenas aspectos do que vem atrelado a essa palavrinha que compõe o subtítulo: Mutante.
Kamala perdeu toda sua individualidade e sua conexão com os personagens do seu próprio núcleo, e a “mutantidade”, como acontece com a maioria dos personagens, acabou não sendo só parte de quem ela é, mas a transformou em mais uma parte de um conglomerado. E agora, ela é só isso. Todos seus problemas agora são problemas dos mutantes e, em mais uma das histórias que repetidamente tentam forçar uma alegoria às minorias enquanto exibem equipes majoritariamente compostas por pessoas brancas, tivemos Emma Frost, a personagem mais padrão da Marvel Comics, fazendo um discurso sobre COMO É SER MARGINALIZADO para Kamala Khan, uma garota marrom, muçulmana e de origem paquistanesa.
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Painéis de Ms. Marvel: The New Mutant (2023) #1 |
G. Willow Wilson, uma das criadoras da personagem, nunca falou publicamente sobre o assunto e limitou as respostas de seus posts no Twitter, mesmo tendo sido uma das encarregadas de escrever “Fallen Friend: The Death of Ms. Marvel”, one-shot que tentou dar alguma dignidade para o legado de Kamala após sua morte em Amazing Spider-Man #26. Wilson nunca promoveu a edição.
E assim nos despedimos de uma das personagens mais marcantes e promissoras dos quadrinhos nessa geração. Os fãs da Ms. Marvel estão insatisfeitos e os fãs de X-Men também estão. Agradar todo mundo é uma tarefa impossível, mas talvez devêssemos parabenizar a Marvel por essa escolha que conseguiu a proeza de não agradar ninguém.
Texto de Fernanda “Ferbs" Pinheiro
Revisão: Vandercleo Junior
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