Se ninguém pediu, por que é tão bom?
Coração de Ferro estreou na Disney+ (inclusive, os últimos 3 episódios lançam hoje a noite) e surpreendeu todo mundo com uma boa história, bons personagens, direção e roteiro que sabem exatamente com quem querem conversar. A nossa review sai em breve — e pode até fazer com que esse trecho do artigo envelheça mal —, mas não é de se surpreender que a série seja decente. Afinal, Ryan Coogler (a mente por trás dos dois filmes do Pantera Negra e do recente sucesso Pecadores) produz, e sua produtora tem se tornado sinônimo de qualidade. Foram anos desde o início de sua produção em 2022 para o projeto sair da forma que não apenas Coogler, mas Kevin Feige, Brad Winderbaum e principalmente Chinaka Hodge estivessem satisfeitos. A qualidade é entendível. Estamos de acordo?
Agora, algo muito dito pelo público desde o anúncio da série é que “ah, ninguém pediu”. Okay… E?
É muito engraçado como essa mesma frase tem sido repetida há bastante tempo quando projetos de personagens mais desconhecidos são anunciados e/ou lançados. Aconteceu com Thunderbolts* e Agatha Desde Sempre (que se provaram bons projetos) e, saindo um pouco da Marvel, é exatamente o que as pessoas têm falado sobre a maioria dos projetos planejados do novo DC Studios. Veja as reações ao anúncio do filme do Cara de Barro, por exemplo.
O ponto é: a sua vontade é tão importante assim? Claro que a nossa atenção como espectadores é ESSENCIAL para qualquer produção, principalmente como produtos, mas antes de tudo essas histórias não são nossas. A maioria de nós sequer é tão criativo para pensar em histórias que valem a pena ter atenção, e — Deus não me deixa mentir — o mundo e a arte estariam perdidos se dependêssemos apenas de ideias e desejos dos fãs para algo ganhar vida…
Se há uma boa história para ser contada, como criador (seja um roteirista, diretor ou até mesmo um compositor, nos permitindo até sair do âmbito do audiovisual e incluir música na discussão), ela DEVE ser produzida e entregue ao mundo. Não à toa existe o marketing e a divulgação para, aí, sim, CRIAR do zero um interesse no público.
Inclusive, é muito mais difícil algo criado a partir do interesse prévio do público ser bom. Já conversamos aqui sobre como as altas expectativas (além de outras coisas) afetam negativamente a experiência do espectador, mas vamos de exemplos.
Absolutamente ninguém pediu, nos anos 90, um filme animado em 3D (principalmente considerando como as pessoas tinham resistência em aceitar o advento desta técnica de animação — irônico, porque agora ela é infelizmente a única levada a sério) sobre a vida secreta dos brinquedos.
Ninguém pediu Toy Story.
Mesmo assim, em 1995, a Pixar fazia e se lançava ao mundo com este que não apenas é um clássico, mas que 30 anos depois faz com que o público PEÇA por mais. E justamente o filme que o público mais encheu o saco para que acontecesse — o 4º, mostrando a nova vida dos brinquedos após o Andy — é o pior da franquia.
![]() |
Arte promocional de Toy Story 4 (2019) |
Voltando para a Marvel: você acha mesmo que alguém pediu um filme do Homem de Ferro em 2008? O público geral estava devidamente alimentado com uma trilogia do Homem-Aranha que definiu o gênero de super-heróis no cinema e dois novos filmes do Batman que mudaram, reimaginaram e amadureceram completamente um personagem já absurdamente amado, e não existiam muitos fãs de Tony Stark para o personagem ter relevância além de séries animadas e aparições em videogames. Na época, a “trindade” da Marvel era formada pelo Hulk e pelo Wolverine além do Amigão da Vizinhança, e todos esses personagens tinham seus direitos cinematográficos vendidos para estúdios que definitivamente não abririam (e não abriram mesmo) mão tão cedo.
A Marvel precisava ir além dos gibis e fazer dinheiro no que estava em alta: cinema. E usou o que tinha: o Homem de Ferro.
Anos e anos se passaram, e as pessoas passaram a pedir mais não apenas de Tony Stark, mas de Viúva Negra, Homem-Formiga e Guardiões da Galáxia. Nomes que, antes de 2015, os nerds seriam zoados por serem tão passionais sobre.
Então, quase 20 anos de um universo que só existe porque ousaram fazer filmes que ninguém pediu. E vamos forçar que se permitir descobrir novas histórias e novos personagens não é o que há de melhor no mundo do entretenimento?
![]() |
Quantos destes personagens você conhecia antes da franquia “Os Vingadores” se tornar popular? |
Entendam de uma vez por todas: se querem te contar uma história, permitam. Se não tem ninguém para te contar a história que você quer ouvir, talvez ela não valha tão a pena ser contada assim.
Permitam-se para filmes, séries e até músicas que vocês “não pediram” e não superestime tanto o seu gosto para arte. Na verdade, arrisco até fazer um apelo abusado e ousado: parem de pedir coisas. Quanto mais a indústria escuta o público, pior tem sido o resultado do que consumimos.
Texto de Tiago Samps
Revisado por Clara Silvestre e Emilly Lois
Comentários
Postar um comentário