A diferença entre "crítica" e "chororô".

Se você não for uma pessoa branca, for LGBTQIA+ ou mulher (independente de ser minoria ou não), o mundo não é seu. Nunca foi. Você sempre esteve limitade a espaços que te foram designados, e ai de você se tentar algo um pouco além, um pouco melhor, do que te foi colocado.

Desculpa por começar o texto assim, mas preciso que você entenda que essa é a verdade que nossa sociedade vive há muito mais tempo do que a idade duplicada do ser humano mais velho vivo no nosso planeta hoje.

O problema é: isso tá mudando. Não é de hoje que minorias se incomodam de não fazer parte da cultura, e não seria diferente na cultura pop. É um fato (e não há problema nenhum nisso) que gostamos mais do que conversa conosco, com o que conseguimos nos identificar. Se a indústria era um espaço dominado por homens brancos, logicamente o que sai dela para o cinema, televisão e literatura vai ter a cara deles. Mas como eu disse, o cenário tá mudando. As mulheres tem se inserido com força no mercado de trabalho desde 1930, o que significa que uma hora veríamos os frutos dessa inserção no entretenimento, consequentemente trazendo pro cinema, televisão e literatura histórias de "cara feminina", de mulheres para mulheres. Ou de mulheres para homens, como aconteceu o inverso por tantos e tantos anos.

A cultura nerd, apesar de parecer um mundo à parte, não se distancia em nada da indústria pop, e essa incorporação (que vem com força não apenas das mulheres) se mostra cada vez mais forte no que tem de mais popular do meio.

Todos os trabalhos oriundos dessa inclusão são bons? Claro que não. Nenhuma obra é intocável ou isenta de críticas. Mas e quando o problema na verdade é você "não se ver" em um único programa dentro de uma franquia que, por décadas, você se viu no centro? É crítica mesmo, ou só chororô?

The Boys está agora na sua 4ª temporada no Prime Video e a série é aclamada desde o seu início, mesmo com pontos muito válidos a serem criticados em toda a sua estrutura, que é repetitiva e se via num medo de concluir ciclos para qualquer um dos personagens principais, dando voltas em si própria para se manter em exibição. Nessa nova fase da série, as coisas parecem andar graças a uma nova personagem introduzida: a Irmã Sábia. Ela não foi a única adição da temporada, tampouco é o único ponto que tem feito a série andar (os roteiristas parecem ter aprendido e ouvido o grupo, mesmo pequeno, que criticou a temporada anterior), mas o maior alvo das críticas por parte da audiência foi para o lado do personagem Francês (na nacionalidade e no nome), que foi revelado (pra surpresa de absolutamente ninguém que prestou atenção na série) bissexual.

Alguém seriamente achou que esse cara fosse hétero?

As críticas ao Francês são as que melhor evidenciam a hipocrisia do público, porque de todas as óbvias reclamações, como "preferia que continuassem desenvolvendo a relação dele com a Kimiko" ou "Poderia ter desenvolvido a relação nova dele com mais calma ao invés de off-screen", foi apenas um grande "estragaram a série com lacração!" pela série incluir, em uma única temporada, uma nova personagem negra (fala sério, já tinha 3 antes!) e um novo interesse amoroso pro cara que na primeira temporada já tinha sido visto com outros homens. Não preciso dizer que nos dois núcleos da série ela é (muito bem) protagonizada por dois homens brancos, Karl Urban e Antony Starr, que são sensacionais em seus papéis (até melhores do que os personagens são nos quadrinhos originais do título).

O ponto é que, em 4 anos de uma série que teve diversos tropeços, o limite para uma certa parcela do público se dá, justamente, na inserção de um ou dois personagens que eles não se identificam – e olha que The Boys tem muito espelho pra esse povo, vide o Capitão Pátria e a também introduzida na nova temporada, Espoleta.

Mulher manipuladora mais inteligente do mundo vs. Pedófila, estupradora, fascista e xenófoba.
Adivinhem quem sofreu repulsa na internet e quem tem sido idolatrada?

Em um escopo ainda maior que The Boys, que querendo ou não é uma franquia recente, temos Star Wars. Já falamos antes aqui sobre como Guerra nas Estrelas pode facilmente ser uma obra política (até porque sua história original foi inspirada em revoluções e guerras na história das Américas), mas obviamente uma saga de filmes que saiu da indústria Hollywoodiana do fim dos anos 70 até o início dos anos 2000 teria a cara de quem dominava a cena na época.

Se você acompanhou os lançamentos da última trilogia de filmes de Star Wars entre 2017 e 2019, sabe exatamente como o público da franquia lidou com uma mulher sendo protagonista de verdade (estando no centro e sendo o rosto) e como a Disney lidou porcamente com todo o desenvolvimento da personagem. De todas as críticas que a trilogia de Rey merece, só o que ouvimos e lemos pela internet é como a Disney estragou e ainda estraga Star Wars com lacração (isso é, mulheres, negros e gays).

Poe Dameron, Finn e Rey. O trio protagonista e vítima da última trilogia de filmes de Star Wars.

Se não acompanhou essa era, parabéns! Pois pode presenciar agora em primeira mão o segundo (ou seria o terceiro) advento desse movimento anti-lacração com The Acolyte, a nova série de Star Wars no Disney+.

Desde que foi anunciada, a série sofreu uma enxurrada de comentários negativos sobre a showrunner ser uma mulher (Leslie Headland), os protagonistas serem personagens negros e asiáticos (Amandla Stenberg e Lee Jung-jae) e que a série era um projeto de Kathleen Kennedy, apesar de, até então, a premissa dessa série ser exatamente o que uma grande parcela dos fãs queriam: uma série dos Jedi no auge do poder.

O elenco de 'The Acolyte' na Star Wars Celebration 2023

Quanto mais se sabia da série até o lançamento, mais e mais comentários surgiam sobre como a série iria se sair mal, como ninguém assistiria, e ainda iniciaram uma "review bombing" (ato coletivo de avaliar negativamente uma série ou filme) no Rotten Tomatoes. Até o lançamento dos dois primeiros episódios, onde tivemos os racistas e machistas escrachados, mas além disso, uma grande operação de desinformação e reclamações ridículas de coisas como "fogo no espaço" (que já teve na franquia lá no primeiro filme, em 77), "morte de Jedi por faca" e a menos velada "falta de gente branca".

Antes mesmo da sua estreia, a série já recebia "Audience Score" negativa.
Se a série não lançou, como a audiência não gostou?

O pior é que a série tem sim seus problemas, tanto no roteiro quanto em sua edição e ela pode acabar sendo ruim no fim. Mas como ninguém daquele grupo está querendo agir de boa fé, porque sabem que seu público não está assistindo a série e só pega o que é dito como verdade, inventam problemas inexistentes a ponto de irem atrás da Wookiepedia (a wiki onde os fãs reúnem as infos do universo de Star Wars) por ela incluir a idade canônica do personagem Ki Adi Mundi, que só tinha uma data de nascimento no antigo – e não canônico – Universo Expandido, alegando que a presença dele na nova série quebra o cânone estabelecido da franquia.

Porém, esse desvio de críticas, que é usado como defesa para quando é acusado de racismo e sexismo, chegou ao seu auge no episódio 3, onde um grupo de bruxas formado apenas mulheres, lideradas por uma mulher negra, gerou gêmeas através da Força (a forma como isso ocorreu não foi ainda revelada) e, em um momento específico de ritual, cantam.

Nada nesse episódio é novo em Star Wars. Ele também não quebra o cânone de Star Wars (Anakin fora gerado pela Força sem ajuda externa, e os Jedi não levam esse fato como certeza dele ser o Escolhido), mas por algum motivo, a quantidade de gente com dor de cotovelo fez a discussão que já estava difícil, insuportável.

Por trás de todas as alegações de "quebra de cânone", há pessoas que odeiam a série por ser protagonizada e idealizada por mulheres e pessoas não brancas.

De novo, quem somos não dita a qualidade do nosso trabalho. Ainda estamos na metade da temporada e The Acolyte pode muito bem não terminar bem, e se acontecer, estaremos aqui com uma review (que ninguém pediu) para criticar com pontos válidos. Afinal, se avaliamos X-Men '97 com 4,5 estrelas (de 5) mesmo a série lidando muito mal com seus personagens negros e LGBT, por quê a galera "anti-lacração" não pode avaliar de forma justa The Acolyte apesar da falta de gente branca? Por que a presença de um personagem negro a mais em The Boys, de repente, estraga toda a série depois de 3 anos de aclamação?

Enfim, quando se é mimado por séculos, deve ser extremamente frustrante não se ver sendo o público alvo de alguma coisa, e imediatamente essa coisa soa como uma afronta pessoal. Mas quando forem criticar, se perguntem: isso realmente é um defeito, ou eu só não me identifico com o que está passando? Se for a primeira opção, vai fundo! Critique. Se for a segunda, segue em frente. Tem centenas outras séries e filmes que foram feitas especificamente para você.

– Texto por Gabriel Bezerra e Tiago Sampaio.

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